A 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da Primeira Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), no Acórdão n.º 1301003.937, proferido em junho de 2019, manifestou entendimento de que a constituição de pessoa jurídica para aproveitamento de ágio para fins de Imposto Sobre a Renda Pessoa Jurídica (“IRPJ”) e Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (“CSLL”) não configuraria, por si, fraude tributária.
Para que se compreenda o contexto jurídico envolvido, deve-se atentar que a pessoa jurídica que absorver patrimônio de outra, em virtude de incorporação, fusão ou cisão, na qual detinha participação societária adquirida com ágio por rentabilidade futura, poderá excluir para fins de apuração do lucro real dos períodos de apuração subsequentes o saldo do referido ágio existente na contabilidade, desde que observe uma série de requisitos e procedimentos previstos em lei. Originalmente, tal procedimento era previsto nos artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/97 e, atualmente, encontra-se disciplinado pela Lei n. 12.973/14.
Assim, nota-se que para fins de aproveitamento de ágio é preciso, entre outras condições, que (1) uma pessoa jurídica A adquira participação societária em outra B, (2) A pague, por tal participação societária, um ágio por expectativa de rentabilidade futura, e (3) haja um evento de incorporação, fusão ou cisão, de modo que os patrimônios de A e B passem a ser apenas um.
Ocorre que justamente em razão da necessidade de confusão patrimonial que mencionamos acima, decorrente da operação de fusão, cisão ou incorporação para aproveitamento de ágio, surgem certas dificuldades para aproveitamento dessa sistemática.
Imagine-se, por exemplo, situação em que a investidora é estrangeira, não fazendo sentido uma operação de fusão ou incorporação da pessoa jurídica investida; ou caso em que adquirente e adquirida não tenham intenção de juntar, operacionalmente, suas atividades. Ora, nessas hipóteses há uma impossibilidade procedimental de se aproveitar do benefício do ágio.
Em tais cenários, é comum a constituição das chamadas “empresas-veículos”, isto é, pessoas jurídicas criadas com o fim exclusivo de realizar o investimento na adquirida e que depois “desaparecem” ao serem incorporadas ou sofrerem processo de fusão com a investida, acionando o gatilho que permite o aproveitamento do ágio.
Posto tal panorama, convém apontar que as autoridades fiscais e alguns julgados administrativos passaram a sustentar, com base na importação de conceitos de direito estrangeiro, que atos praticados com o fim específico ou preponderante de gerar ganhos tributários poderiam ser desconsiderados por autoridades fiscais.
Muito bem. Um dos alvos desse entendimento de necessidade de propósito extra tributário para operações jurídica foi justamente o uso de empresas-veículos. De fato, alegando que tais pessoas jurídicas são criadas, meramente, para possibilitar o aproveitamento do ágio, as autoridades passaram a desconsiderar a existência dessas pessoas jurídicas para fins fiscais e glosar o aproveitamento do ágio em cobranças que, inúmeras vezes, são mantidas pelos tribunais administrativos.
É justamente o que se verifica no caso sob análise. Segundo se depreende do voto do relator do acórdão, ora examinado, a fiscalização havia sustentado que a operação, alvo da cobrança, era estruturada unicamente com intuito de aproveitamento de ágio, eis que: (i) uma pessoa jurídica teria efetivado a negociação de aquisição de participação societária da investida e suportado o ônus financeiro da aquisição; (ii) ao passo que a empresa veículo, como pessoa jurídica sem atividade operacional, teria, tão somente, “formalizado a operação”. O que resultou em glosa do ágio e imposição da multa de 150% (cento e cinquenta por cento) em razão do ágio. Não houve, no caso, questionamento do fundamento econômico do ágio ou do laudo que lhe deu suporte.
Ao analisar o caso, o CARF, houve por bem cancelar a exigência da cobrança do ágio em razão da suposta fraude.
Inicialmente, o voto do eminente Relator José Eduardo Dornelas Souza declara a decadência de parte do débito, uma vez que reconhece a inexistência de fraude, o que reflete na contagem do prazo decadencial aplicável. Sustenta o voto que “não há fraude à lei, quando inexiste vedação em lei quanto aos procedimentos adotados pelo contribuinte, não devem do ser confundido eventual erro de interpretação de lei com fraude à lei”.
Ademais, argumenta o referido voto que o aproveitamento do ágio, para fins fiscais, pressupõe “a confusão patrimonial, mediante incorporação, cisão ou cisão, das despesas de ágio contra os lucros da empresa adquirida.” Nesse sentido, salvo nos casos de fraude, “a utilização de empresa-veículo não gera qualquer efeito tributário, isto é, não altera o potencial de amortização deste em caso de operação de fusão, incorporação ou cisão que ocasione o encontro patrimonial requerido pelo legislador.”
Nesses termos, ainda na linha do voto do relator, “se ausente manifestação clara e expressa do legislador no sentido de limitar a liberdade constitucional da empresa” o uso de empresa-veículo não poderia ser limitado.
Por outro lado, o voto indica um segundo argumento para sustentar o propósito negocial na constituição da empresa-veículo: a existência de uma conta-garantia. Explica-se.
Em uma operação de aquisição de uma pessoa jurídica é comum a constituição de uma conta-garantia que mantém parte do preço de venda em garantia. Nesse sentido, caso surjam eventuais despesas não conhecidas, quando da celebração do contrato de compra e venda, que a pessoa jurídica que foi objeto da operação deva incorrer – por exemplo, um tributo não declarado, uma reclamação trabalhista etc. – utiliza-se o mecanismo da conta-garantia para que as despesas sejam pagas. Por outro lado, se em determinado período, estipulado contratualmente, não surja qualquer despesa a ser paga pela conta, o recurso é liberado integralmente à parte.
Geralmente, a conta-garantia é aberta em nome do comprador que paga o preço e do vendedor, havendo regras estipuladas em contrato de como os recursos podem ser liberados.
Por vezes, porém, tal situação cria embaraços, pois a despesa é incorrida por uma pessoa jurídica A – objeto da negociação – mas o recurso é detido por conta-garantia bancária em nome de pessoa jurídica B – que adquiriu a participação societária de A. Assim, há um descasamento entre o titular da despesa e a pessoa jurídica que detém o recurso para quitar tal despesa.
Nesse sentido, em uma operação em que a empresa veículo é a compradora, a posterior incorporação da empresa-veículo faz com que a conta-garantia fique em nome da pessoa jurídica adquirida, gerando certa comodidade.
No caso sob análise, o voto do relator sustentou que tal circunstância seria um propósito negocial apto a validar a operação.
Outro ponto sustentado pelo voto foi que responsabilidade solidária, prevista no artigo 124 do Código Tributário Nacional, não se aplica a empresas do mesmo grupo econômico. Assim, pessoa jurídica arrolada na cobrança que não se confunde com o contribuinte, não podendo, portanto, ser indicada como responsável em razão de ser, simplesmente, do mesmo grupo econômico.
Diante de tais fundamentos, foi acatada a alegação de decadência de certo ano-calendário, e, no mérito, foi dado provimento ao recurso voluntário para cancelar integralmente a exigência e para excluir do polo passivo a pessoa jurídica tida como responsável solidária.
Alertamos que o julgamento tem validade apenas para as partes do processo e o presente texto tem intenção apenas informativa, não devendo ser interpretado como qualquer modalidade de consultoria.
Copyright © 2022 McNaughton, Pires e Erustes Advogados – todos os direitos reservados.